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É preciso ser preciso: desafios de quem escreve "documentos"​

Atualizado: 6 de mar. de 2020

Por Herbert de Souza


Escrever é registrar ideias, sentimentos, pensamentos, informações, instruções, ordens… nalgum lugar. Quem escreve tem um objetivo bem particular: comunicar-se. A escrita nasceu dessa imperiosa necessidade de o homem grafar, por meio de sinais, um comunicado qualquer para ser lido por alguém em espaços e momentos distintos e distantes de quem o produziu. Com o advento dos meios de comunicação virtuais — sites, portais, chats, redes sociais etc. —, a maneira de se comunicar modernizou-se, e a folha impressa de papel, outrora protagonista de todo esse processo, perdeu parte de sua primazia. No entanto, a finalidade primeira do ato comunicativo continua a mesma: alcançar o outro que se encontra distante para dizer-lhe algo. Depois da descoberta do fogo, a escrita é, inquestionavelmente, uma das mais antigas e importantes conquistas da humanidade, presente nas mais diversas atividades humanas.


Escrever é diferente de falar


Um texto, ao contrário da fala, uma vez escrito, ou seja, deitado no papel ou em qualquer outro suporte que lhe sirva de registro, transforma-se em documento, assumindo, em muitos casos, o status de verdade dita e inconteste. A expressão “preto no branco”, frequentemente usada para dar feição legal a acordos entre partes, ilustra bem isso que acabamos de falar. “Está escrito, cumpra-se!” é outra que também serve de ilustração, indicando que o discurso que se materializou sob a forma de palavras escritas tem valor de verdade e de lei e deve ser criteriosamente cumprido. Os textos sagrados, como os da Bíblia e os do Corão, e os constitucionais, que asseguram direitos e deveres do cidadão em países democráticos, são exemplos disso também. 


A fala, no entanto, por ser produzida em um ambiente interacional, que permite ser retificada e justificada pelo falante no momento em que é proferida e que se desfaz ao sabor do vento, deixando vestígios apenas na memória do ouvinte, não carrega consigo o peso desse valor “documental”.

Em razão de sua natureza “documental”, um texto, qualquer que seja ele, exige, de quem o escreve, certas habilidades que devem ser adquiridas e exercidas com bastante cautela e perícia, porque as ideias nele presentes (opiniões, fatos, relatos, testemunhos, acordos…), uma vez materialmente grafadas no papel, não poderão ser desditas, mesmo que escrevamos outros textos para justificar, esclarecer ou mesmo revogar aquilo que foi registrado anteriormente.


Uma lei, por exemplo, que anule a eficácia de outra preexistente extinguirá tão somente seus efeitos jurídicos, mas as ideias nela contidas seguirão seu curso para serem apreciadas e julgadas moralmente pela história.

O simples desejo ou intenção de comunicar não é garantia alguma de que seremos entendidos. A forma pode trair a "intenção" do conteúdo. Escrever é uma grande responsabilidade! Assim pensando, elaborei três dicas para ajudar aqueles que, no exercício de suas profissões, precisarão ser precisos naquilo que dizem quando escrevem. A primeira delas tem muito a ver com o título deste texto. Vamos lá:


1. Polissemia e precisão vocabular


Certas palavras e expressões são polissêmicas, quer dizer, possuem numerosos significados. Quando mal colocadas no texto, poderão criar ambiguidades desnecessárias e perigosas.




É o caso da palavra “preciso”, que tanto pode significar, a depender do contexto em que apareça, “necessidade” quanto “exatidão”. Há um pensamento frequentemente mal interpretado, atribuído erroneamente a Fernando Pessoa, que diz o seguinte:


"Navegar é preciso, viver não é preciso”.

Conheço muita gente que entrou em depressão por que leu erradamente o significado denotativo do vocábulo “preciso”, cujo sentido único ali presente é “exatidão”.


Qualquer navegador, de posse de instrumentos náuticos eficientes e de uma boa embarcação, será capaz de traçar uma rota marítima e alcançar, com exatidão, sem correr riscos de se perder mar a dentro, o destino que desejar. Desde antes de Pessoa que isso é possível. No entanto, essa mesma garantia não se tem quando o assunto é viver.


Às vezes, traçamos metas, rumos para as nossas vidas, e um mar de incertezas, de surpresas muda o curso para além do que definimos e planejamos para nós mesmos.

Viver, ao contrário de navegar, é mesmo impreciso, incerto, mas absolutamente necessário - outro sentido que esse vocábulo também poderá assumir.


A palavra “preciso” - aqui usada em sentido denotativo e convenientemente empregada, convém frisar, porque o objetivo primordial de sua colocação é o de ensejar uma reflexão – pode, em certas circunstâncias, criar estranhezas e provocar confusão interpretativa em alguns leitores. É preciso ser cauteloso nas escolhas e no uso de certos vocábulos e expressões, sobretudo se o texto que intencionamos escrever se tratar de uma lei, regulamento ou outro que se assemelhe em gênero. A polissemia é sempre bem-vinda no texto literário, cuja qualidade artística é, em grande parte, medida pela engenhosidade do escritor em pluralizar sentidos. Afora isso, deve ser cuidadosamente evitada.

2. Economia de recursos e clareza de ideias


Um texto prolixo acaba na lata do lixo

Quanto mais enxuto, mais preciso é um texto. A economia no uso de palavras e de alguns termos e expressões é um recurso importante para a manutenção da unicidade e clareza de seu texto, ajudando o leitor a seguir, com mais desenvoltura e segurança, o caminho traçado por suas ideias em busca do entendimento daquilo que você deseja transmitir-lhe ao final da leitura.


Se é possível dizer algo usando apenas uma palavra ou expressão, que não se use, então, um amontoado delas para dizer a mesma coisa. Seja econômico.

Às vezes, com a intenção de precisar ou intensificar determinadas ideias ou pensamentos, encadeamos desnecessariamente palavras sinônimas, quando, em seu lugar, a escolha de um substantivo ou adjetivo mais apropriado poderia surtir melhor efeito.

Assim, evite repetições do tipo “A MPB é um gênero musical exuberante, maravilhoso, surpreendente…”.

Cada um desses adjetivos, por si só, já traz consigo carga expressiva suficiente para qualificar a singularidade de nossa música. A repetição é desnecessária. De igual forma, evite certos pleonasmos, corriqueiros na fala popular, que, por serem redundantes, nada acrescentam:

acabamento final, certeza absoluta, metades iguais, sintomas indicativos, protagonista principal, anexar junto, há muitos anos atrás, almirante da marinha, brigadeiro da aeronáutica, sorriso nos lábios, criar novos empregos, países do mundo, manter o mesmo, fraternidade humana, amigo pessoal, canja de galinha, pequenos detalhes, todos são unânimes, inaugurar um novo recinto... E tantos outros que ouvimos e lemos inclusive na mídia impressa e televisiva todos os dias.

3. Ordem direta: a simplicidade da escrita

Não deixe o leitor trilhar um labirinto de palavras


Um texto bem escrito é aquele de fácil compreensão. É evidente que o conceito de fácil compreensão está relacionado à ideia de leitor ideal, aquele que, por possuir potencialmente um repertório cultural condizente com as ideias presentes no texto, é capaz de compreender facilmente o que nele está escrito. Afora essa observação, se a leitura não fluir prontamente é porque, em parte, o problema está em quem o produziu e não em quem o leu. Nunca digo para meus alunos que escrever é tarefa fácil. É difícil, e isso é inconteste, mas não impossível. A prática da escrita, como em qualquer outra atividade, ajuda-nos a contornar dificuldades. Costumo dizer que escrever textos difíceis é muito fácil; o difícil é fazê-los compreensíveis para o leitor. Quem escreve de qualquer jeito decerto que encontrará um leitor qualquer.

Um texto é para ser compreendido, jamais adivinhado

Para alcançar a simplicidade da escrita, há diversas maneiras de se proceder, e uma delas é o uso daquilo que, em gramática, convencionou-se chamar de “ordem direta”:

  • sujeito

  • verbo

  • complementos


Quando os termos são colocados nessa ordem (sujeito + verbo + complementos), fica mais fácil para o leitor acompanhar a leitura, porque é possível identificar, logo de início, quem, fez o quê, quando, onde, como e por quê?


Vejamos um exemplo:


"O Planalto anunciou novas medidas econômicas ontem em Brasília com receio".


Observe que foram respondidas cinco das seis perguntas mencionadas anteriormente sem a necessidade de se intercalar nenhum desses termos por vírgula.

Sim, é isso que a ordem direta faz no texto: elimina as vírgulas, deixando o texto mais limpo.

Às vezes, é preciso quebrar essa ordem para chamar a atenção do leitor para um aspecto importante do enunciado. Assim, se quisermos que o nosso interlocutor atente para o como o Planalto anunciou as novas medidas econômicas, basta antecipar o termo "com receio" para o início da frase e marcá-lo com uma vírgula. Veja:


“Com receio, o Planalto anunciou novas medidas econômicas ontem em Brasília”


- Fácil, né?!


Mas atenção: o uso constante da ordem direta pode deixar o texto meio certinho demais, meio enfadonho. Use-a com moderação.


Bem, meus amigos, essas foram as recomendações que eu reservei para hoje. Quando comecei a escrevê-las, pensei em apresentar, conforme fiz em um post publicado anteriormente, mais cinco novas dicas, porém desisti por uma boa razão: estudos demonstram que textos com mais de mil e quinhentos palavras cansam o leitor, sobretudo os de Internet. Como já estou me aproximando desse limite recomendável, deixarei novas dicas para uma outra publicação.


Até a próxima conversa.

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