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Adeus, minha pequena! (Parte I)

Atualizado: 23 de jul.



 

É mesmo mágico quando, de maneira premeditada, por meio da pesquisa motivada ou mesmo de maneira inesperada, deparamo-nos com vestígios do nosso passado que nos permitem, mesmo parcialmente, enxergar o cotidiano daqueles que viveram antes de nós. Quando isso ocorre, é possível ainda, contando sempre com o auxílio luxuoso, em parte, da imaginação, compreender tanto os sentidos do nosso agorinha, quanto a razão de nossos diversos hábitos e das multiformes realidades culturais de nossos dias. São esses homens e mulheres de ontem, por assim dizer, que se nos apresentam como nossos antepassados mais diretos, compondo, de certa forma, em mosaico, a gênese de nossa história. E como não poderia ser diferente, embora tenham vividos décadas, séculos antes, carregam consigo semelhantes sentimentos, comuns a todos nós, de padecer pelas angústias de seu presente e de sofrer pelas incertezas de seu porvir.


O texto que se segue é um comentário pontual, um tanto imaginativo, acerca de uma publicação feita por um repórter quase anônimo publicada em um jornal são-cristovense dois dias depois do surgimento da nova capital de Sergipe. Digo “repórter quase anônimo” porque nosso escritor se subscreve com um brevíssimo Justus, desacompanhado de seu sobrenome. Na verdade, trata-se de um “comunicado”, conforme mesmo escreveu seu autor, informando o leitor sobre a transferência da Capital da Provínica, da antiga São Cristóvão para a nova Aracaju. Certamente, quando foi escrito, Aracaju ainda não existia. O morador de São Cristóvão - deixa entrever o Justus em seu artigo - está perplexo, um tanto quanto angustiado e dividido diante da iminente perda do status de sua cidade como Capital da Província de Sergipe. Por este se tratar de um escrito longo, cuidarei de, se necessário, subdividi-lo em partes, para maior conforto do leitor, e, em momento oportuno, publicá-lo-ei em data diversa.


Era uma quarta-feira, 19 de março de 1855, dois dias após ser decretada oficialmente a cidade de Aracaju como a nova capital de Sergipe, em sua edição n.º 21, o “Correio Sergipense: (Folha Official, Politica e literária)”, impresso na “Tipografia Provincial”, com sede ainda em São Cristóvão, já antiga Capital da Província, publica o seguinte:


COMUNICADO[1]

Mudança da Capital.

Eis um movimento que hoje ocupa seriamente a geral atenção na província! Grave sensação sem dúvida deverá ele produzir e tem produzido! Deploram-no uns e outros o aplaudem!
Todos têm razão!
Parecerá absurdo tal dizê-lo, mas é verdade.
Provemo-lo.

[1] Trecho transcrito do original contendo, em sua ortografia e em sua estrutura sintática, certa mudança para o português atual com fins de melhor compreensão.

Lamentam-se os habitantes da Capital que se deixa, por se lhes figurar, de presente, uma perda total e irreparável de nossa cidade, de suas fortunas, e isso tem razão.
Folgam os que esposaram a ideia, porque visam de presente um horizonte de prosperidade para a província, e lá um ponto claro que lhe assoma o dia refulgente de seu brilhante futuro; e nisso também lhes vai a razão.
Esse futuro abençoará ou amaldiçoará o pensamento.
Cremos que a benção do Senhor e não a sua maldição completará a glória do homem inspirado para a realização desse pensamento.
Não deixaremos, porém, de analisar os argumentos dos que choram. São eles:
Perda dos edifícios públicos!
Ruína do comércio!
Miséria da população!
Desabrigo na nova Capital!

Observe o leitor que, de início, para o nosso repórter, tantos os que se posicionam a favor quantos os que se mostram contra à transferência da Capital têm suas razões; no decurso de seu artigo, no entanto, ele tentará, cuidando de ser imparcial, não tomar partido nem de um nem de outro posicionamento em relação à mudança da capital. “Parecerá absurdo tal dizê-lo" (que todos têm razão) - adverte ele -, "mas é verdade”; e como que desejoso de provar o que acabara de dizer, ao longo de seu Comunicado, apresenta, analisa e refuta quatro argumentos. Entretanto, no parágrafo seguinte, ao iniciá-lo escrevendo “Cremos que a benção do Senhor e não a sua maldição completará a glória do homem inspirado para a realização desse pensamento.”, deixa entrever, a um só tempo, sua opinião acerca deste assunto e sua simpatia por Ignácio Barbosa, um “homem inspirado para a realização desse pensamento”. É de conhecimento da maioria, sobretudo dos sergipanos, que Ignácio Barbosa é o fundador da cidade de Aracaju.


Sigamos com a leitura...


Bem.
Quais os edifícios públicos a perder-se?
O palácio do governo no valor máximo de 50.000$000!
A casa do mercado no de 26:000$!
A cadeia no valor de 25:000$000!
O quartel no de 12:000$000!
A casa da Tipografia no de 2:000$000!
O armazém de artigos bélicos na de 3:000$000!
Total 118:000$000!

De acordo com Carlos Eduardo Francisco Sampaio, professor de matemática do Centro de Excelência “Professor João Costa”, em Aracaju, Sergipe, se convertido em moeda atual, este montante de 118 milhões de contos de reis corresponderia a R$ 14. 514.000,00 (catorze milhões e quinhentos e catorze mil reais), ou seja, uma bagatela, em termos patrimoniais, para uma capital provincial, mesmo para uma de pequeno porte como São Cristóvão. Assim, o argumento de perda material de seus bens públicos não se sustenta como justificativa impeditiva para a mudança da capital.


Continua o autor...


Suponha-se mesmo que se perdessem esses edifícios, esses contos de réis; - seria isso uma razão suficiente para conservar-se a província assentada para seu desenvolvimento de progresso, quando todas as outras se levantam e marcham apressadas acompanhando o movimento geral?
Não será mui mesquinho semelhante argumento, indigno de nós e mui deponente contra nosso bom senso? Mas tais edifícios jamais se devem considerar perdidos.
A câmara municipal deixará uma imprópria casa térrea alagada, e passará a fazer suas sessões e as do júri num belo edifício, qual o do palácio do governo.
A casa do mercado continuará a servir para o mesmo fim; - e quando não servisse melhormente - deverá ser aproveitada para uma casa penitenciaria, reunindo para esse fim todas as condições –.
A casa da tipografia[i] e armazém de artigos bélicos, por insignificantes, não merecem menção...
Atendam por tanto aqueles que condenam a mudança da capital ao que talvez se lhes pergunte:
Nesta capital de Sergipe, onde funcionava a assembleia provincial?
Em um salão do convento de São Francisco!
A Biblioteca pública?
Em outro salão desse edifício.
A Tesouraria geral?
Em outro salão ali mesmo no convento!
A Tesouraria provincial, n'um corredor térreo do tal convento!
O Correio geral?
Num miserável cubículo térreo, ainda desse mesmo convento!
O Liceu?
Num salão do convento do Carmo!

O leitor há de perceber que o Convento do Carmo, ao que tudo indica, funcionava como se fosse um mal-arranjado centro administrativo da antiga Capital; tal observação se faz pertinente porque revela, em parte, a preocupação do autor em mostrar a completa precariedade patrimonial da Província. Dito de outra forma, São Cristóvão nada tem a perder em razão mesmo de nada possuir em termos de bens imóveis provinciais.


Segue o texto...


Se não temos, há tanto tempo que possuímos os foros de capital, edifício próprio para a nossa câmara municipal, quando Laranjeiras, Estância e até mui pequenas municipalidades da província o possuem; - se não possuímos um único edifício próprio em que funcionem nossas repartições públicas, que razão nos assiste para deplorar e maldizer uma mudança que em breve nos fará sair desse estado de atraso a que vivíamos condenados pela força de um mau fado?
Pois achamos hoje o bem e repelimo-lo?
Bem se diz que os povos são as vezes como crianças, que choram pelo bem que se lhes faz quando entendem que se lhes contraria.
O argumento, pois, dos edifícios cai absolutamente por terra em face de tais considerações.

A esta altura do texto, nosso colunista começa a apresentar e a refutar o segundo argumento, “a ruína do comércio”, tratando-o como “infundada asserção”. Diz ele:

A ruína do comércio.
Como se quer justificar esta infundada asserção?
Dizendo-se:
Deitamo-nos felizes, e amanhecemos desgraçados!
Perdemos em um dia tudo que ganhamos em anos!
Os meios únicos que tínhamos para nosso alento, tiram-nos; ficamos baldos[2] de outros!
Sem empregados públicos, sem a força de linha[3] e policial, está morto nosso comércio; aniquiladas nossas transações -
Falsos ou verdadeiros estes argumentos, os que tomam em guarda de sua causa, perdem-na tristissimamente, e dão a justificabilidade à medida da mudança da capital.[4]
Se falsos, é claro que a nossa existência comercial, não estando dependente dessa existência de empregados e soldados em Sergipe, pode continuar a existir e a prosperar.
Um povo não morre por tão pouco.
Se verdadeiros, não são aqueles mesmos que se servem de tais argumentos que lucidamente demonstram que uma cidade que só tem comércio porque nela há empregados públicos e soldados não pode ser a capital de uma província?

Aqui cabe uma reflexão, advinda de uma inferência, de uma suposição, plausível em razão das teorias economicistas de então, ainda hoje em voga, que apontam o fator econômico como uma das principais causas a condicionar a transferência da Capital são-cristovense para Aracaju. Conforme deixa entrever o texto do Justus, corre à boca miúda entre os moradores da Província à época, sobretudo em meio à classe de funcionários públicos, pequenos comerciantes e modestos empresários da antiga cidade, que uma capital deve ser muito mais do que um lar para modestos funcionários público-administrativos que, diuturnamente, sustentam a economia local, composta basicamente de pequenos comerciantes. O argumento de ter sito o quesito economia (agrícola?) um fator decisivo para a mudança da capital, parece aqui ganhar corpo. De acordo com esse critério, para além de uma clientela específica (funcionários públicos), a existência de um centro administrativamente organizado, capaz de ordenar, concentrar e ecoar, de maneira satisfatória, o produto de uma economia, indústria, agricultura e comércio pungentes, que se mantêm constante em fluxo de mercadoria, bens, serviços e capital pecuniário, a serviço de uma expressiva classe consumidora, tanto interna quanto externa, de forte trânsito nacional e internacional, é mesmo um dos fatores determinantes para a manutenção do status de Capital a cidades de estados e países.


Continuemos com a leitura do texto:

Gostamos do argumentar por cifras: ainda a elas.
A quanto montarão provavelmente esses ordenados dos empregados e soldos dos soldados, que, conservados no capital, formam a sua ventura, e retirados a sua desgraça?
Empregados públicos gerais e provinciais valor máximo 30:000$
Força de linha 30:000$
Corpo policial 50:000$
Total 110:000$
Se a existência comercial de Sergipe não é animada pelo concurso da lavoura, única que pode sustentar e dar vida ao comércio; se seu alento está somente dependente desses 110:000$000 de ordenados e soldos, quem impede aos que a ele se dão de se irem estabelecer na região para onde fugiu essa alma de seu corpo, ali unir-se a ela?
Recearão que esse seu animador espírito não entre em nova composição com esse mesmo corpo?
Se não podeis subsistir sem os ordenados e soldos dos empregados e tropas, acompanhe-os, assim como ao exército que levanta o acampamento seguem os vivandeiros[5] após sua bagagem.
Se, pelo contrário, esses ordenados e soldos não são o “sine qua non”[6] de nossa existência, então não vos queixeis; continue em vossos misteres.[7]
 

[2] falho, vão, inútil

[3] “Força de linha”: expressão equivalente à “força policial”. Grifos nossos.

[4] Trecho de difícil compreensão; em outras palavras, o autor afirma que aqueles que “tomam (esses argumentos) em guarda (defesa) de sua causa” e os usam em seu benefício, acabam por colocá-la (a causa) em risco, perdendo-a “tristissimamente” por apresentar - ao contrário do que inicialmente se desejava - justificativas para a mudança da capital.

[5]Vivandeiros, também conhecidos como vivandières, eram mulheres que acompanhavam exércitos e vendiam alimentos, bebidas e outros itens essenciais aos soldados. Elas desempenharam um papel crucial durante guerras e conflitos, fornecendo suporte logístico aos militares. Originado na França, o termo vivandière foi amplamente utilizado durante o século XIX para descrever essas mulheres. As vivandeiros eram conhecidas por sua coragem e resiliência, enfrentando condições adversas nas frentes de batalha para atender às necessidades dos soldados. Muitas vezes, elas se tornavam figuras reconhecíveis e respeitadas dentro das unidades militares. É interessante notar que o papel das vivandeiros variava ao longo da história e em diferentes culturas. Elas desempenharam um papel significativo em manter o moral das tropas e fornecer apoio prático durante tempos de guerra...

[6] "Sine qua non" é uma expressão em latim que significa "sem a qual não". É usada para descrever aquilo que é essencial ou indispensável para a realização de algo.

[7] Misteres é o plural de mister. O mesmo que: trabalhos, cargos, empregos, necessidades, ocupações, profissões, serviços.

[i] Esta já está ocupada pela Mesa de Rendas Provinciais.

 

Chegamos ao fim desta "Parte I". Caso tenham interesse em ler a segunda deste ensaio, manifestem-se aqui, deixando seus comentários logo mais abaixo. Isso muito contribuirá para nos motivar a seguir adiante. Ainda: se for de seus interesses publicarmos (em face mesmo da leitura um tanto quanto difícil dele, bastante comum quando se trata de publicações antigas) algum comentário mais pontual acerca do texto, também se manifestem aqui nesse sentido. Este é um trabalho ensaístico de natureza didática. Também aceitamos contribuições interpretativas que colaborem para o esclarecimento desta postagem. Entrem em contato.


Obriago pela atenção,


Prof. Heriberto de Souza.

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