Olá, amigos, estamos de volta para apresentarmos a Parte II deste nosso ensaio sobre a análise que o ilustre desconhecido repórter Justus fez relativa às opiniões da população são-cristovense acerca da mudança da capital para a nova Aracaju. Se vocês encontrarem dificuldades em acompanhar a leitura desta segunda parte, leiam antes Adeus, minha pequena (Parte I).
Como vimos anteriormente, Justus (o autor quase anônimo de um Comunicado publicado em jornal são-cristovense dois dias depois de ter sido oficializada Aracaju a nova capital de Sergipe, ou seja, em 19 de março de 1855[1]) apresenta, analisa e refuta quatro argumentos, expostos pela população à época, contrários à mudança da capital. Dois deles já foram apresentados e comentados por mim na primeira parte deste ensaio. Eis o terceiro argumento, mais um que se opõe à mudança:
Miséria da população.
Para isto provar, diz-se que haverá privação do trabalho: que enfim é uma calamidade pública.
Ha uma verdade em tudo isto; verdade que reconhecemos e somos também a sentir.
Uma parte de nossos concidadãos sofre prejuízos com a mudança da capital; mas esses prejuízos não importa[2], a sua perda, a sua total ruína; esses prejuízos podem desaparecer, e até melhor fortuna[3] deles nascer. O homem nunca deve dizer: estou perdido. Se o diz, pondo-se em inação, não se resignando aos revezes da sorte, de certo está perdido.
Mas se ele despreza o mal, se se lança ao trabalho e procura meios de safar-se do peso que o esmaga, Deus o ajuda, e sua decidida vontade o salva, e lhe restitui a mesma ou melhor posição que a que possuía.
O trabalho não morre, fecunda sempre a quem nele se lança - Ide à nova capital, e achareis mais trabalho do que na antiga - A atividade do trabalho ali é desmedida e muito mais vantajosa. –
Argumenta-se por último com o desabrigo em a nova capital e diz-se:
Como é doloroso ver empregados públicos abandonarem suas casas e famílias, ou verem-se obrigados a levá-las sem por onde as abriguem com graves prejuízos!
O empregado público, o homem da milícia e da armada não estão na mesma razão dos mais cidadãos: estes podem domiciliar-se e residir livremente onde lhes parecer; aqueles, porém, desde que se deram ao público serviço não têm, nem podem ter um domicílio e residência voluntaria ou a arbítrio, e sim de necessidade onde os chama o dever.
A não ser assim, a haver a liberdade de cada um serventuário público estar onde bem lhe parecer, seria então colocar o dever em subordinação ao empregado, e não o empregado ao dever.
Não poderia haver empregos.
Por este lado igualmente se esvai (...)[4]
Aqui cabe certa reflexão acerca da natureza do funcionalismo público, cuja ideia hoje se afigura como anacrônica. Aqueles que se prestam a servir o povo, à sociedade, deve, de fato, abraçar esse sentimento de renúncia pessoal em favor do coletivo. É um dever de ofício. Hoje, ao contrário, são certos privilégios que o setor público oferecem àqueles que querem estar a seu serviço que atraem boa parte da população para os seus quadros.
Também cabe aqui ainda outra observação. Ao se referir a funcionários públicos, o nosso Justus – talvez de maneira inconsciente –, quando menciona “O empregado público, o homem da milícia e da armada não estão na mesma razão dos mais cidadãos”, faz um curioso recorte desse conjunto de servidores públicos (o homem da milicia e da armada), como se quisesse, indiretamente, revelar-nos qual parcela da população são-cristovense, à época, estava, de fato, bastante incomodada com a mudança da capital e muito incerta quanto aos acontecimentos futuros. É bom lembrar que homens da armada (Corpo da Armada) são os que conduzem, operam e mantém todos os navios de guerra, de pesquisa e de apoio da Marinha do Brasil e executa funções administrativas e operativas em organizações militares de terra, privativas desta própria corporação. Por que o Justus ilustrou sua fala fazendo menção justamente a essa categoria de funcionários públicos?
Ah, deixa para lá, caro leitor, esta minha última observação. São apenas inferências, conjecturas... Não dá mesmo para saber, em um texto tão pequeno quando este Comunicado do Justus, se houve ou não princípio de motim ou mesmo rebelião quando desses acontecimentos de nosso outrora. Assim questionei porque bastante se tem falado, mas pouco documentalmente demonstrado, a respeito da resistência tanto civil quanto militar dos são-cristovenses em relação aos fatos que, seguramente, muito lhes trouxeram desconforto. O que se sabe no tocante a resistência dos antigos moradores da velha cidade está, em boa parte, restrito aos mencionados esforços empreendidos, nesse sentido, por João Bebe-água, personalidade política que liderou uma rebelião de quatrocentos homens contra a transferência da capital para Santo Antônio de Aracaju. Que algum historiador, isento de amarras ideologica, ajude-nos a entender melhor este momento de nossa história.
Sigamos com a leitura do Comunicado do Justus e a sua apresentação do quarto e último argumento, o desabrigo.
Quanto ao desabrigo não há mais felicidade em argumentação.
Não existem por ora na localidade da nova capital abrigos que satisfaçam e preencham todas as boas comodidades e condições agradáveis a uma família, mas eles existem segundo a atualidade das circunstâncias o permitem, estado que deve em breve muito e muito melhorar, pois quem empreendeu a mudança e a realizou há de tudo empenhar para dar vida a seu pensamento não deixando-o morrer inanido e à míngua, tanto mais quanto já hoje se porfia[5] em edificar.
Se hoje a espíritos fascinados essa mudança representa um espectro de que horrorizados fogem, amanhã talvez sejam os primeiros a dizer:[6]
Benção sobre aquele que a despeito de prejuízos dos povos e mesquinhas considerações com sacrifícios de si próprio, firmou nosso futuro e feliz destino.
Não desconhecemos que nossa cidade tão própria para bons passatempos, pela bela índole de seus habitantes; pela pureza de suas águas, pela salubridade de seu clima, apresenta, com pesar o dizemos, todas as condições negativas para uma capital.
Ela nunca seria uma praça comercial; sua condição seria a de feudatária da Bahia.
Era tempo mais que suficiente de Sergipe tomar sua verdadeira posição entre as demais províncias.
O que torna importante uma cidade é a maior afluência nela de estrangeiros, o de suas relações diretas com os países mais felizes em desenvolvimento comercial e industrial.
A cidade de S. Cristóvão repele tudo isto por sua posição e circunstâncias locais.
Há tantos anos que é capital qual a casa estrangeira da mais insignificante arte indústria que nela se estabeleceu para transmitir a seus filhos o conhecimento e a cultura delas?
Aqui não podemos ter alfandega, nossa mui curta exportação não anima a importação, nem a menor relação direta com o estrangeiro.
Dois barcos são suficientes para dar saída a todos os produtos de nossa lavoura, fazendo duas ou três viagens cada um!
Um barco unicamente é o que faz o costeio da importação!
As vezes quando ou o capricho do dono desse barco, ou circunstâncias do tempo embaraçarem suas viagens, eis a fome a bater-nos a porta como muitas vezes há sucedido, ficando muitos dias sem pão o povo, sendo preciso mandar vir farinhas e outros gêneros da Estância e Laranjeiras.
São estas as condições de uma boa capital?
Tem Sergipe[7] muitos anos de existência como capital da província, por que ainda não conseguiu ter as suas ruas calçadas, um chafariz, ou ao menos uma fonte pública de água potável, bebendo-se dos lugares vertentes como a natureza os criou?
Tinha Sergipe um Liceu, a que está reduzido? A três lentes; não pôde conservar esse estabelecimento e dividiu-o para a Estância e Laranjeiras!
Examinai agora o que é a Barra da Cotinguiba: ide ali ver o lugar mais próprio para a capital da província para um entreposto comercial.
Ali oferece o terreno uma bela planície; um ancoradouro magnifico, vista agradável, saudabilidade de ar. E por ali que se efetua o grosso da exportação da província.
Quando a Estância exporta 5000 caixas, Villanova 3000, a antiga capital 2000, a barra da Cotinguiba leva aos mercados da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Europa 25000 caixas.
Ali afluem anualmente de 30 a 40 barcos estrangeiros e de 60 a 80 nacionais, e mais afluirão quando estiver em marcha o vapor a reboque que não pode muito demorar-se.
Ali sem dúvida correrá mais vigilante a fiscalização quer da alfândega, quer das outras estações, e acharão as partes mais fáceis os seus meios de recursos se vexames[8] sofrerem dessas estações.
Finalmente os dois pontos comerciais mais importantes da província Laranjeiras e Maruim é por ali que efetuam todo o seu exercício comercial de importação exportação, é ali da mais palpitante necessidade o estabelecimento da capital.
Ao governo e à assembleia provincial cumpre animar os estabelecimentos. A seu bom senso nada escapará.
E assim termina o Comunicado do nosso ilustre e quase desconhecido repórter Justus. Nele, de maneira inquestionavelmente clara, percebemos o critério último, de acordo com o nosso colunista, que motivou a criação de Aracaju com fins de se estabelecer a nova capital de Sergipe d’El Rey: que a nova cidade reunisse condições de funcionar como um entreposto, sobretudo comercial industrial, para toda a província.
Se hoje nos transformamos neste desejoso entreposto comercial-industrial-político-cultural..., isso é assunto para outro texto (descabido tratá-lo aqui neste ensaio, que ora encerramos). Cabe a você, leitor, conhecedor de nossa atual capital, fazer essa constatação e, por si mesmo, buscar novos questionamentos e conclusões. Espero que todos tenham gostado. Fiquem bem. Até a próxima aventura ensaística.
Prof. Heriberto de Souza
[1] Aracaju foi fundada em uma quinta-feira do dia 17 de março de 1855.
[2] A palavra “importa”, acredito, que deveria estar flexionada no plural (importam), aqui possivelmente está sendo usada no sentido de “importância”, “custo”, “soma”, “causa”, “implicação” ou ainda “resultado”, podendo a frase em questão ser assim entendida: “... esses prejuízos não resultam (ou não implicam) ...”.
[3] “Fortuna” aqui, certamente, significa sorte, destino.
[4] Trecho completamente inteligível em razão da má qualidade da impressão gráfica e posterior digitalização.
[5] Qualidade e caráter do que é constante e perseverante; perseverança, tenacidade.
[6] O texto é, mesmo, de difícil leitura; isso se dá, em parte, por conta de inúmeras inversões de sua ordem sintática que, em gramática, se conveniou chamar de “ordem direta e inversa”. Este trecho fica mais fácil de se compreender quando colocamos os termo em sua ordem direta, assim: “Se hoje, a (para) espíritos fascinados, essa mudança representa um espectro (fantasma) de que fogem horrorizados, amanhã talvez sejam...”.
[7] Possivelmente, o autor quis se referir a São Cristóvão, a antiga capital da província.
[8] A palavra está grafada com “i”, assim: “veixames”; não há, no entanto, em dicionários, vocábulo com sentido correspondente a essa grafia.
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