Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil no dia 22 de abril de 1500, desembarcando em Porto Seguro, no litoral sul da Bahia. Em 1.º de maio deste mesmo ano, Pero Vaz de Caminha escreveu, também em Porto Seguro, uma carta ao rei de Portugal, Dom Manuel I, com fins de informar a descoberta destas novas terras e as suas impressões acerca de sua gente. Este documento é conhecido como “Carta a El-Rei Dom Manoel sobre o achamento do Brasil”. A missão de Caminha era relatar o que havia nas novas terras descobertas. A carta foi encontrada em 1808, no Arquivo Real da Marinha Portuguesa, pelo padre e historiador Aires de Casal, passando a ser o responsável pela primeira reprodução deste documento histórico em seu livro “Corografia Brasílica”, de 1817.
Em 1999, a TAP Air Portugal, companhia aérea portuguesa, promoveu o concurso literário "Redescobrindo o Brasil aos 500 Anos'‘, destinado a estudantes das faculdades de Letras de 110 universidades brasileiras. O desafio era escrever uma carta ufanista (gênero textual marcado pela exaltação de aspectos positivos da nação, evidenciando o patriotismo, as virtudes e as conquistas do povo e do país, muitas vezes de forma desmedida) a Jorge Sampaio, então presidente de Portugal em 2000, obedecendo a um número limite de linhas e páginas, assumindo a nacionalidade de um estudante português que exerceria o papel de um novo Pero Vaz de Caminha, tendo por missão relatar a situação do Brasil 500 anos depois de seu descobrimento. Tal limitação impunha uma seleção rigorosa de quais localidades, peculiaridades culturais e belezas naturais deveriam ser contadas e mostradas. Cerca de cinco mil estudantes brasileiros participaram do certame. Eu estava entre eles. Em meu recorte, optei por descrever as peculiaridades de três localidades brasileiras: Salvador, Rio de janeiro e Pantanal Mato-grossense. O meu pequenino Sergipe e sua notável Aracaju, infelizmente, ficaram de fora.
Ufa!, foi mesmo uma aventura e tanto naqueles idos de uma juventude ainda muita. O texto abaixo é uma cópia desta carta ufanista escrita por mim em 01 de maio 2000, uma segunda-feira, por ocasião do aniversário de nosso achamento. Espero que apreciem a leitura.
Excelentíssimo Senhor Jorge Sampaio,
Presidente de Portugal.
Fui incumbido de escrever a V. Excelência relatos de como se encontram as terras brasileiras quinhentos anos após a esquadra de Pedro Álvares Cabral ter desembarcado em Porto Seguro, no litoral da Bahia. De antemão, quero confessar que nada do que venha a descrever traduzirá, com precisão, o que é hoje este país e quem são os que fazem desta nação soberana uma das mais prósperas do mundo moderno. Tudo aqui é indescritível, e mesmo o melhor dos escritores, o mais hábil dos cronistas, certamente sentiria dificuldades em adjetivar esta terra de nome Brasil.
Assim, quanto a mim, ao tentar descrever a grandiosidade hoje desta terra, não ficaria ofendido se V. Excelência me tomasse por mentiroso ao supor ter inventado tudo o que agora descreverei, causando, portanto, desfeita e vexame ao meu presidente; no entanto, meu senhor, nada que vos falo nesta carta é enganoso, e para assim tudo grandiloquentemente pudesse eu imaginar e criar teria por me considerar escritor, que não o sou, e se o fosse não teria a graça de ser, na arte, um gênio como Camões ou Pessoa, pois somente Deus ou grandes poetas como esses seria capaz de criar e descrever tudo o que meus olhos presenciaram desde quando aqui cheguei.
Para este povo, senhor, Deus é brasileiro, e Ele não o permitirá vestir outra camisa que não traga as cores verde e amarela de sua bandeira! Pode cantar o fado português ou o rock americano, mas será sempre desafinado. O seu coração bate ao ritmo da cuíca e ao compasso do samba. Orgulha-se de sua música, cultura e arte, de seu futebol, de suas cidades e de suas gentes.
Salvador foi a primeira cidade que visitei. Na capital-mãe do Brasil e filha da África, todo branco faz questão de ser negro. Templo do misticismo e da cultura afro-brasileira, no dizer de Caetano Veloso, "tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem." Se V. Excelência aqui estivesse, certamente saberia entender o significado desse verso. E se o meu Presidente ainda não sabe, direi o que é que a Bahia tem. A Bahia tem: caruru, vatapá, mungunzá, acarajé, abará, João Gilberto, Caetano Veloso, Dorival Caymmi, Olodum, Jorge Amado, Mãe Menininha do Gantois, Irma Dulce, Itapoã, Abaeté, Pelourinho, Cidade Alta e Baixa, Mercado Modelo, Elevador Lacerda, Itaparica, Morro de São Paulo, Porto Seguro, Ilhéus, Itabuna, trio-elétrico, carnaval, candomblé, capoeira, berimbau, Conceição da Praia, 365 igrejas uma para cada dia do ano, e muitas bênçãos do Senhor do Bonfim e dos babalorixás.
Quando deixei Salvador e fui ao Rio de Janeiro, já não era mais aquele que V. Excelência gostaria que fosse: um relator responsável, imparcial, objetivo. Na Cidade Maravilhosa, tirei férias de meu Portugal e caí no samba até o dia amanhecer. Os cariocas dizem orgulhosamente que o Rio foi Deus quem fez. De fato, a cidade traz mesmo o mistério e a beleza de uma criação divina. Em qualquer direção que se olhe, revela-se poético. De braços abertos para a Baía de Guanabara, um Cristo Redentor gigantesco dá boas-vindas aos visitantes.
Mas do carnaval carioca, a maior festa popular do planeta, não posso me furtar de dar a V. Excelência uma descrição mais detalhada. Durante o reinado do Rei Momo, ao ouvir o ronco da cuica e o rufar dos tambores, a razão enlouquece. A tristeza se despede para nunca mais voltar, e a fantasia, agora senhora absoluta, impera sua vontade sobre os escravos da alegria.
Hoje já sou verde e rosa, mangueirense de coração. Sei que o meu presidente está a imaginar que perdeu de vez o seu fiel servidor ou, que Deus me proteja, a julgar coisa pior. Lutei para não tomar partido e ser um fiel cumpridor do meu dever, mas quando, na madrugada de um sábado, a Estação Primeira de Mangueira mergulhou na passarela do samba com as cores de nosso Portugal, em solo brasileiro deitei pela primeira vez as minhas lágrimas. A Mangueira trouxe, para o mundo inteiro ver, a nossa amada pátria de Camões e de Pessoa. Em nome de Portugal, pedi a Deus para abençoar esses nossos irmãos de além-mar.
A comoção foi tanta que ainda agora, quando escrevo ao meu presidente, dr. Jorge Sampaio, as ideias parecem confusas e me foge a riqueza dos detalhes. Lembro-me claramente do primeiro carro alegórico, uma réplica perfeita da esquadra de Cabral. As treze naus cabralinas, trazendo de volta ao presente a nação Portuguesa e o Brasil de 1500, cortavam o mar revolto do sambódromo, o templo do deus Dioniso. O samba enredo, cantado engenhosamente com o nosso sotaque, falava do passado heroico lusitano, de Coimbra, Lisboa e Madeira; de um Brasil que nasceu em um Porto Seguro por gosto e graça de nossos irmãos de Portuga. Outros carros vieram, todos seguidos por dezenas de alas compostas por coloridos passistas, sambando ao som do mestre Jamelão e ao ritmo da bateria da Mangueira. Nós, senhor presidente, os irmãos de Portuga, como carinhosamente somos chamados, simbolicamente estávamos lá, também comemorando, com muito orgulho, 500 anos de uma Brasil hoje verde e amarelo, mas que certamente ainda traz no peito as cores de nosso Portugal.
Até agora, descrevi um pouco o Brasil de 500 anos que se transformou, pela força de seu povo e a graça de Deus, em uma nação soberana que busca na diversidade a sua identidade. Mas a Terra Cabralina de Vera Cruz ainda pode ser vista em sua exuberância virginal e dimensões continentais.
Também estive, senhor presidente, no Pantanal Mato-grossense. Diante dele, calei-me, respeitoso, como um devoto perante um santuário. Se julgo a arte de um poeta incapaz de retratar o que vi, nenhuma palavra minha há de ser dita para descrever esse pedaço de terra que faz parte do paraíso. O homem pantaneiro não fala, apenas ouve, vê e cala! Ali, ele é apenas mais uma espécie a compor o grande mosaico da maior reserva ecológica do planeta conhecida como o Santuário Ecológico da Humanidade. Se o pantanal nos assombra por sua beleza e nos faz ver, em qualquer direção que se olhe, a imagem refletida de um deus vivo, muito há, senhor presidente, o que se conhecer neste país cujo futuro será ainda mais glorioso do que o seu passado.
Dr. Jorge Sampaio, presidente de meu Portugal, ao me responsabilizar por redescobrir a nação brasileira não fui o Pero Vaz de Caminha que V. Excelência julgou-me ser. Garanto ao senhor que nem mesmo o Caminha, se hoje vivo, resistiria aos encantos desta terra. Redescobrir o Brasil é aprender substantivos novos, muitos deles sem tradução em nenhuma outra língua. Espero que os nossos irmãos brasileiros continuem a nos chamar de irmãos de Portuga por muito mais de 500 anos, e que, no futuro, estejamos de volta para comemorarmos juntos um Brasil 1000 anos.
E desta maneira dou aqui a Vossa Excelência conta do que nesta também nossa terra em brevíssimo tempo vi. E se a um pouco alonguei-me, que me perdoe: assim o fiz porque o desejo que tinha de vos tudo dizer, fez-me pôr escrever de tal modo a miúdo e copiosamente.
Desta cidade de Aracaju, capital do menor Estado deste soberano país, hoje, 1.º de maio de 2000, uma segunda-feira, despeço-me respeitosamente de V. Excelência.
J. Heriberto de Souza
Estudante de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Sergipe
Aracaju, Sergipe, Brasil.
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