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Marxismo e Filosofia da Linguagem: convidando Bakhtin para um diálogo

Atualizado: 17 de set.


Pretendo, por meio da escritura de alguns artigos a serem publicados aqui mesmo no Portal do Costão, trazer Bakhtin para um diálogo. Faço etse convite por uma razão muito simples: Mikhail Bakhtin e o assim chamado Círculo de Bakhtin tiveram uma contribuição significativa para a fundamentação teórica da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), especialmente no que diz respeito à concepção de linguagem e ao trabalho com gêneros discursivos no ensino de língua portuguesa. A BNCC adota uma perspectiva dialógica da linguagem, alinhada com os pressupostos teóricos de Bakhtin e de seu Círculo. Interação, Dialogismo e Enunciado, por exemplo, três conceitos-chave da Teoria Dialógica da Linguagem, presentes neste importante documento da Educação brasileira, fundamentam a proposta da Base Nacional de um ensino de língua voltado para a reflexão sobre os usos da linguagem e para uma aprendizagem construtiva e colaborativa, primando, assim, para a formação de indivíduos capazes de interagir de maneira crítica em diferentes áreas da vida humana. Por meio desses e de outros referenciais teóricos, a BNCC busca assim promover o desenvolvimento da competência discursiva dos alunos, capacitando-os e os convidando a participar efetivamente das práticas sociais mediadas pela linguagem. Se quisermos aprimorar nossa prática laboral em sala de aula e avançar nos estudos da linguagem, de seus códigos e de suas tecnologias, é de fundamental importância melhormente conhecê-los.


A eles – a esses três conceitos-chave mencionados acima -, no entanto, voltaremos a falar em um outro momento, para que possamos adotar uma abordagem mais pontual e esclarecedora. Por hora, é suficiente compreendermos que a visão bakhtiniana de interação considera a linguagem como um evento social e interativo presente nas relações entre os indivíduos; enquanto o conceito de dialogismo indica que todo discurso é influenciado por vozes sociais que estabelecem diálogos com outros discursos e a noção de enunciado, por sua vez, traz-nos a ideia de uma unidade concreta da comunicação verbal que se destaca pela alternância dos sujeitos falantes.


O primeiro texto que trago para dialogar com Bakhtin é "Marxismo e Filosdofia da Linguagem", livro publicado no Brasil pela Editora Hucite, um dos mais importantes de sua singular produção intelectual. Esta obra é bastante referenciada e citada sobretudo pelos intelectuais ligados à Educação brasileira por ela dedicar especial atenção à compreensão da linguagem como um fenômeno social e ideológico. Publicado originalmente em 1929 sob o pseudônimo de Volóchinov, a obra explora a relação entre linguagem, sociedade e ideologia, propondo uma análise crítica que se distancia das abordagens linguísticas tradicionais.


Neste artigo que ora escrevo, em particular, dedicar-nos-emos à compreensão e a explicitação das ideias presentes no segundo capítulo deste livro. Nossa intensão é torná-lo mais facilmente compreensivo para aquele leitor interessado em assuntos relativos à linguagem e ao ensino da língua portuguesa a partir dos pressupostos da BNCC. Neste primeiro momento pretenderemos apenas dar a conhecê-lo, comunicar a sua existência enquanto reflexão intelectual bastante referendada pelos pensadores da nossa Educação para que, assim fazendo, possivelmente possamos melhor compreender o que exige a Base Nacional acerca de nossa prática educacional em sala de aula. Trata-se, pois, de estudo didático e reflexivo sobre aquilo que o próprio autor nos deixou escrito. Sigamos para o texto.


O capítulo a que nos referimos acima intitula-se "Relação entre as Infraestruturas e as Superestruturas". Nele, Bakhtin aborda a interdependência entre a base econômica de uma sociedade e suas expressões culturais e ideológicas. Para melhor entendimento do que trata este capítulo, torna-se fundamental compreendermos os conceitos de infra e superestrutura a partir do pensamento maximiniano. Para Marx, a infraestrutura refere-se ao conjunto das forças produtivas e das relações de produção em um dado momento histórico. É a base econômica que determina as condições materiais de existência e as relações sociais de uma sociedade.


No contexto do marxismo, os conceitos de infraestrutura e superestrutura são fundamentais para se entender a dinâmica das relações sociais e econômicas. A infraestrutura, em particular, refere-se à base econômica de uma sociedade, que inclui as forças produtivas, as relações de produção e as condições materiais que sustentam a economia. Para Karl Marx, a infraestrutura é composta, entre outros elementos, pelos meios de produção (ferramentas, máquinas e instalações utilizadas na produção de bens), pelas relações sociais de produção, que se estabelecem entre os indivíduos no processo de produção, a exemplo das interações trabalhistas entre patrões e trabalhadores, e pelas forças produtivas, que combinam o trabalho humano e os recursos naturais com fins de otimizar a produção material. Todos esses elementos infraestruturais formam a base sobre a qual se ergue a superestrutura, influenciando diretamente as condições de vida e as relações sociais.


A superestrutura, por sua vez, é composta pelas instituições sociais, políticas e culturais que emergem da infraestrutura. Nela, estão presentes o Estado, representado por suas instituições políticas (governo, leis e sistemas jurídicos), a cultura (religião, filosofia, arte e outras formas de expressão cultural) e a ideologia (ideias e valores que justificam e sustentam a ordem social existente). A superestrutura é vista como uma projeção da infraestrutura, refletindo e reforçando as relações de poder e dominação existentes. Marx argumenta que a superestrutura serve para legitimar e perpetuar a dominação da classe dominante sobre a classe trabalhadora. A superestrutura é, para utilizarmos uma linguagem figurada, o Olimpo e os seus deuses.


Particularmente, a relação entre infraestrutura e superestrutura é frequentemente descrita em Mark como unidirecional, estabelecendo, por assim dizer, uma relação causal ou linear em que os elementos presentes na infraestrutura determinam a existência mesma da superestrutura. No entanto, algumas interpretações modernas do marxismo, como a feita aqui por Bakhtin, reconhecem que essa relação pode ser mais complexa, permitindo que a superestrutura também influencie a infraestrutura. Isso implica que mudanças nas ideias e nas instituições culturais podem, em certos contextos, afetar as condições econômicas e sociais.


Todos esses esclarecimentos preliminares são cruciais para a análise marxista da sociedade, pois ajudam a entender como as condições materiais e as relações sociais moldam as ideologias e as instituições que governam a vida social. Essas considerações iniciais também são importantes para entendermos a obra de pensadores como Mikhail Bakhtin (e Voloshinov) que, de igual forma, contribui para essa discussão, explorando como a linguagem e a comunicação desempenham papéis significativos na formação da ideologia e na interação entre esses dois domínios.


Dito isso, fica fácil percebermos que a superestrutura tem por função a manutenção da ordem social, uma vez que atua para legitimar e perpetuar as relações de produção existentes, servindo aos interesses da classe dominante, qualquer que seja ela. Em última instância, ela possibilita que a classe dominante, por meio do discurso ideológico, dissemine suas ideias, moldando a consciência social e estabelecendo normas que sustentam sua posição de poder.


Assim, a relação entre infraestrutura e superestrutura, no marxismo ortodoxo, é marcada por um determinismo unidirecional em que a infraestrutura é vista como determinante da superestrutura, ou seja, as condições econômicas moldam as instituições e ideologias sociais. Bakhtin, singularmente, rediscute a perspectiva maximiniana ao afirmar que há uma interdependência entre elas. A relação não é estritamente unidirecional. A superestrutura também pode influenciar a infraestrutura criando um ciclo de feedback no qual as ideias e instituições sociais podem, em determinados contextos, afetar as condições econômicas. Ele enfatiza a complexidade da relação entre infraestrutura e superestrutura, sugerindo que a análise marxista deve considerar tanto a influência da base econômica sobre a cultura quanto o papel que as ideias e instituições podem desempenhar na transformação das condições materiais. Essa perspectiva amplia a compreensão das dinâmicas sociais e culturais, reconhecendo a interação entre fatores econômicos e ideológicos.


Ao agir assim, em síntese, enfatiza a interdependência entre esses dois conceitos, desafiando a visão determinista tradicional do marxismo em uma perspectiva bidirecional.


Os principais pontos sobre essa relação bidirecional são:

  • Interdependência:

    Bakhtin argumenta, conforme mencionamos acima, que a infraestrutura (base econômica) não apenas determina a superestrutura (cultura, ideologia, instituições), mas que a superestrutura também pode influenciar a infraestrutura. Essa visão contrasta com a interpretação marxista ortodoxa, que tende a ver a relação como unidirecional.

  • Reflexão e Refração:

    Ele utiliza os conceitos de "reflexão" e "refração" para descrever como a realidade (infraestrutura) se reflete na linguagem e nas ideologias (superestrutura) e, ao mesmo tempo, como essas ideologias podem refratar ou reinterpretar a realidade, influenciando as relações sociais e econômicas.


A refração do signo linguístico em Bakhtin refere-se à capacidade dos signos de refletir e ressignificar realidades ideológicas em contextos sociais diversos. Bakhtin argumenta que os signos não são neutros ou univalentes; pelo contrário, eles são produtos de interações sociais e históricas, refletindo as condições materiais e ideológicas em que são utilizados. Isso implica que, ao serem enunciados, os signos carregam uma carga ideológica que se transforma com o tempo e o contexto, evidenciando a natureza dialética da linguagem. Cada uso de um signo pode trazer novas interpretações e significados, dependendo das relações sociais e das ideologias em jogo. Desta forma, a linguagem se torna um espaço de luta entre diferentes significados e valores, onde a individualidade e a coletividade se entrelaçam.


Para ilustramos, de maneira didática, o que foi dito acima, apresentamos a seguir dois exemplos:


Primeiramente, tomemos por base obras de arte literária, como as de Dostoiévski, de cuja leitura Bakhtin observa como as personagens dialogam entre si, refletindo e refratando suas realidades pessoais e sociais. Cada voz no diálogo traz uma nova perspectiva, alterando a compreensão do leitor sobre a situação. Nesses diálogos, os signos não apenas refletem a realidade, mas também a distorcem e a reinterpretam, em estreita relação com o contexto social e histórico no qual estão imersos.


Em um segundo momento, imaginemos uma cena cotidiana, quando uma pessoa compartilha uma experiência: sua narrativa reflete não apenas os eventos, mas também sua interpretação pessoal, influenciada por suas emoções e contexto social. Essa narrativa, ao ser ouvida por outra pessoa, pode ser refratada, gerando novas interpretações e significados.


Encerramos aqui este primeiro diálogo com Bakhtin. Queremos você no próximo bate-papo. Até lá.


Prof. Heriberto de Souza.

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